sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Bêdêzine, editado em Torres Vedras


No fanzine Bêdêzine há uma vertente que merece a pena sublinhar desde já: a sua edição deve-se a uma entidade cultural, a Cooperativa de Comunicação e Cultura de Torres Vedras, a qual, obviamente, não persegue finalidades lucrativas, pelo que esta sua publicação se integra no conceito de zine, aliás assumido pela entidade editora logo no título.

Outro aspecto que faço ressaltar desde já, é que o Bêdêzine exemplifica o tipo de fanzine rudimentar na sua montagem e apresentação, pormenores que ainda hoje há quem associe a este tipo de publicações amadoras: as páginas ligadas por um agrafe (este em local da capa diferente do usual, no canto superior esquerdo), a impressão do miolo em deficientes fotocópias (textos e bandas desenhadas).
Apenas um pormenor de melhor qualidade a contrastar com o restante: a capa foi feita em cartolina, e tanto o título do zine como o respectivo número aparecem coloridos, o que valoriza a apresentação.


O editorial, não assinado, foca alguns aspectos do conteúdo do Bêdêzine, bem como pormenores relevantes do fanzinismo, que considero manterem-se pertinentes passados trinta e dois anos, pelo que o reproduzo na totalidade:

Cito:

"Bêdêzine saúda todos os "fanzines" que, resistindo a "ventos e marés", desempenham um importante papel como "escolas" de Banda Desenhada. Herdeiros do espírito pioneiro do "Impulso", que se publicou em Torres Vedras no início dos anos 70, desejamos desempenhar um importante papel na formação e divulgação de novos valores da Banda Desenhada.
Quanto a nós, um "fanzine" de B.D. deve cumprir um triplo objectivo: funcionar como "escola" de B.D.; divulgar autores inéditos e de qualidade; dignificar a B.D. como uma das mais versáteis artes do nosso século, através da publicação de ensaios, entrevistas, informações e estudos críticos sobre B.D., principalmente a portuguesa.
Como escola de BD estamos abertos a novas experiências neste campo e à publicação de primeiros trabalhos de autores, onde estes possam ser submetidos à crítica dos leitores, como única forma de aperfeiçoarem as suas capacidades.
Como meio de divulgação, este "fanzine" será um meio, por vezes único, de dar a conhecer a um público interessado, autores de boa qualidade, que por motivos relacionados com os condicionalismos do nosso mercado nacional, continuam sem oportunidade de uma merecida divulgação. Neste campo apostamos na permuta entre os "fanzines" existentes, "cedendo" os trabalhos mais interessantes, tendo em conta as tiragens limitadas de cada fanzine, e as diferentes zonas de implantação.
Quanto ao exemplar que têm nas vossas mãos, ele é o resultado de um trabalho colectivo, mas também das nossas limitações técnicas e económicas.
Contamos neste número com uma colaboração muito especial do Arlindo Fagundes e do José Ruy.
Quanto a Arlindo Fagundes, é ele o autor do desenho que seleccionámos para a capa deste nº0. Em próximo número publicaremos um depoimento desse simpático autor sobre a condição de desenhador de BD em Portugal.
Do mesmo tema é o depoimento publicado neste número, desse grande nome da BD portuguesa que é o José Ruy, assim como um original da sua autoria que ele ofereceu à Cooperativa de Comunicação e Cultura.
Neste número publicamos igualmente vários trabalhos que nos foram enviados para o concurso que realizámos, integrado na realização do 1º Salão de BD de Torres Vedras.
Humberto Leonardo, natural de Encarnação, no vizinho concelho de Mafra, foi uma das revelações deste concurso. Com 22 anos, é da sua autoria "Nadar e Afogar".
Outra das revelações foi o José de Sousa Bastos, natural de Torres Vedras, com 24 anos e de quem publicamos uma prancha.
Destes dois autores esperamos poder continuar a contar com a sua colaboração.
Do Ruca (Rui Cardoso), autor de 17 anos, natural da Azambuja, divulgamos um seu trabalho já anteriormente publicado no fanzine "RITMO". Por este motivo, e devido à sua extensão, ele será publicado em continuação. 
Em próximos números vamos ter possibilidade de divulgar outros trabalhos que foram enviados para o concurso. Infelizmente existem trabalhos muito bons que não poderemos publicar por razões técnicas (como por exemplo a impossibilidade de reprodução a cores).
De todos os trabalhos que nos foram enviados falamos noutro lado.
Resta-nos convidar todos aqueles que tenham trabalhos de B.D. por publicar, que os submetam à nossa apreciação, para possível publicação.
De preferência usem o formato A4, e desenhem a tinta, em preto e branco.
ATÉ À VOLTA

Correspondência:
Cooperativa de Comunicação e Cultura de Torres Vedras
Largo 25 de Abril, Apartado 77, 2561 Torres Vedras Codex
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Ruca (Rui Cardoso) é o autor das seis pranchas de BD acima reproduzidas, que representam apenas o excerto publicado neste número, porque a obra é bastante mais extensa.
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Segue-se um texto manuscrito em quatro páginas, de que reproduzo apenas excertos, do consagrado autor José Ruy. Um depoimento que, apesar da vintena de anos passados, continua a ter alguma actualidade em vários dos aspectos focados, embora também tenha havido grandes alterações em relação à realidade editorial (o surgimento de várias pequenas editoras independentes) bem como aumento de possibilidades para os novos autores que se inserem na área dos comics americanos, que colaboram directamente pela internet com as grandes editoras Marvel, DC e Image.

Em baixo fica reproduzida a página inicial do texto de José Ruy  


Nota do blogger: A fim de facilitar a leitura, bastará clicar duas vezes sobre o texto, uma inicial para separar a imagem, a segunda sobre a lente que aparece em seguida (o mesmo que será necessário fazer para ver/ler a banda desenhada reproduzida antes).

"(...) Para o desenhador estrangeiro há um mercado aberto e próspero, sem quaisquer condicionantes. Através de agências para onde trabalham no seu país (...) essas agências promovem e negoceiam o trabalho dos desenhadores, fazendo os fotolitos e colocando a sua B.D. no próprio país e em todos os outros com quem mantêm relações comerciais (...)
(...) o material americano, belga, francês, italiano e até espanhol é comprado em Portugal por preços muito mais baratos do que o material nacional (...)
(...) No meu caso pessoal foi-me comprada uma história de B.D., "A Vida Romanceada de Gutenberg", em 1958, para França, e em 1979 fui convidado pelo Comité da Cruz Vermelha Internacional instalado em Genève, para fazer a História da Cruz Vermelha em banda desenhada, num álbum com 54 páginas, e um pequeno resumo em 4 páginas. Este último trabalho está a ser distribuído neste momento por 150 países (os que fazem parte da Liga da Cruz Vermelha) em 10 línguas, de que eu faço as legendas de 6 versões.  (...)"
"(...) Desenvolveu-se entretanto o mercado do álbum. Mas por se tratar de um trabalho completo, o editor não arrisca em principiantes, mesmo com qualidade. (1) O nosso público não acarinha as edições nacionais. Quase que é preciso dar nomes estrangeiros às nossas histórias para que o público as prefira.(2)
Não é o meu caso, mas por isso publico histórias de B.D. há mais de quarenta anos, e só agora tenho uma posta aberta para a edição dos meus trabalhos, alguns com 26 anos, como a "Peregrinação de Fernão Mendes Pinto", de que no espaço de 3 anos se fizeram 3 edições, ou do caso de "Os Lusíadas em B.D." de que constam vendas na ordem dos 30.000 exemplares em várias edições no prazo de dois anos. (...)"

Comentários deste blogger:
(1) Houve um caso invulgar de um alto funcionário da editora ASA, de nome Francisco Linhares, que começou a aceitar pranchas de bandas desenhadas de vários novos autores e pagando-lhes de imediato.
A certa altura a editora apercebeu-se de que já tinha adiantado uns milhares de escudos (foi nesse tempo) e que apenas possuía partes de bandas desenhadas. Acharam mal esse processo, despediram o funcionário, e as bandas desenhadas nunca chegaram a ser publicadas.
(2) O mesmo já aconteceu com escritores de romances policiais, que adoptaram nomes estrangeiros para os seus livros terem maior aceitação. Exemplos mais flagrantes e passados com gente também ligada à BD foram os casos de Roussado Pinto que passou a usar pseudónimos, entre os quais Edgar Caygill, e de Diniz Machado, colaborador da revista Tintin, que usou o pseudónime de Denis McShade para assinar os seus romances policiais. 
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Reprodução parcial (6 pranchas de um total de 9) de um novo, H. Leonardo, que "desapareceu" do circuito da BD
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Título: BêDêzine - Fanzine de Banda Desenhada
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Data da edição: [Novembro 1985]
Local da edição: Torres Vedras
Formato: A4
Total de páginas: 26
Forma de edição: impresso em fotocópia, com as páginas ligadas por um agrafe no canto superior esquerdo.  

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