sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Bedelho Fanzine


O título do objecto gráfico-literário em papel é Bedelho Fanzine, mas na ficha técnica a designação é mais pomposa: "Mensário de Divulgação da Banda Desenhada", e acrescenta de imediato que a edição parte do Instituto Português da Juventude/Algarve.

Ora é também como fanzine - nada impede que seja mensário e que o editor seja uma instituição oficial - é como zine, repito, que o classifico, com todo o respeito e cumplicidade. Sem dúvida que a qualidade gráfica do exemplar em apreço (nº2 - II série - Dezembro 1993) é elevada, com a capa impressa em offset -, apresenta-se com número e data de depósito legal, e uma boa tiragem (500 exemplares). Não obstante, a publicação insere-se no conceito de zine por diversos factores: teve por editora uma instituição cultural sem fins lucrativos, as colaborações eram benévolas, a distribuição era restrita aos frequentadores do Centro de Juventude de Faro e do Instituto Português da Juventude/Algarve, e aos assinantes (sim, teve assinantes, tal como o meu fanzine Eros, que não deixou de ser zine por esse motivo). Não acredito que o citado Instituto tivesse qualquer intenção de lucrar com a venda do fanzine, nem isso provavelmente seria autorizado naquele tipo de instituição.

Aliás, o exemplar que aqui mostro pertence já a uma segunda série, mais cuidada no aspecto gráfico, perceptível na capa ilustrada em quadricromia impressa em papel couché, embora o conteúdo não tenha diferenças assinaláveis em relação aos números editados na primeira série: inclui bandas desenhadas de vários autores, designadamente José Carlos Fernandes, Luís Filipe Peres (que aqui testou a obra que mais tarde seria editada em álbum no sistema de "print on demand"), Sérgio Soldá e Escoval.

 
Uma bd curta de José Carlos Fernandes
.....................................................................

Há igualmente textos, onde se inclui uma extensa entrevista ao brasileiro Henrique Magalhães, estudioso dos fanzines e autor de BD, criador da personagem "Maria Seu Apelido Lisboa", e, especialmente importante para este blogue, estudioso dos fanzines, autor de livros sobre o tema, em especial o intitulado "O Rebuliço Apaixonante dos Fanzines".


Das quatro páginas ocupadas pela introdução e a própria entrevista, reproduzo apenas alguns excertos. Cito:

"Henrique Magalhães, desenhista brasileiro natural de João Pessoa, vem dando muito da sua vida ao fenómeno dos fanzines de banda desenhada de uma forma pouco comum, ou seja,no âmbito universitário, onde tem defendido com galhardia toda a rica complexidade que envolve o fanzinato. (...)
(...) Cedeu dois anos da sua vida e foi residir para Paris, como forma de absorver in loco o que se está a passar no principal baluarte fanzinístico europeu. (...)
(...)
    BF (Bedelho Fanzine) - Como surgiu a ideia (...) de fazeres um levantamento sobre os fanzines franceses e, num âmbito mais à distância, portugueses?
    HM - Inicialmente eu fiz um trabalho sobre os fanzines brasileiros, um pouco histórico e também analisando a crise e o estado, no momento em que os estudava. Isso corresponde ao final dos anos 80. (...)
(...)
    BF - Voltando ao cerne da questão, com que ideia ficaste desta tua estada europeia, face às investigações já feitas?
    HM - (...) descobri que existia um forte movimento em vários países, como França, Portugal e Estados Unidos (...)
(...) Na França o que aconteceu é que alguns tornaram quase sendo profissionais, de melhor qualidade que certas revistas do mercado. (...) Além de que o próprio Estado patrocinava em parte a produção de fanzines de qualidade. (...) 
(...) Em relação a fanzines como o "PLG", o "Bulles Dingues" ou o "Bedesup", e alguns outros que têm uma produção excelente, são em parte financiados pelo Estado (...)
(...)
   BF - Em relação ao fanzine português, que ilações tiras?
   HM - Bom,vejo-o como uma coisa muito diferente do que acontece no Brasil ou na França,por exemplo. Aqui me parece que os fanzines vêm preencher o espaço que não existe no mercado. Então eles substituem a revista. Ora na França coexistiam revista e fanzine, e este último não tentava ocupar o espaço que a revista preenchia. No Brasil a inexistência de qualquer possibilidade de publicação de autores nacionais e de informação fez com que surgissem os fanzines. Portanto, nestes três países teremos três procedimentos diferentes. (...)
(...)
    BF - Acusa-se os fanzines portugueses mais conhecidos (e não vale a pena citar nomes) de serem formais de mais, ou seja, como tu disseste, sérios de mais. Não estará na essência do fanzine uma certa irreverência e um certo inconformismo? Notas isso nos fanzines portugueses mais conhecidos ou essa vertente está mesmo a falhar por omissão, não sendo fácil de encontrar?
    HM - Eu atribuo a isso uma questão de estilo. Pode ser que um faneditor encare a BD de uma forma muito formal, mas que contribua de alguma forma com o seu fanzine para uma reflexão ou para publicação de novos autores, e outros podem ter uma tendência mais anárquica, mais satírica. 
(...)
    BF - Entretanto, num campo mais pessoal, tens um livro em gestação sugestivamente intitulado "Rebuliço Apaixonante dos Fanzines". Que mais projectos acalentas?
   HM - Tenho um projecto para a Editora Brasiliense, "O Que É Fanzine", um resumo da minha dissertação de mestrado sobre fanzines brasileiros.  (...) Desejo igualmente concluir até final de 93 a tese que estou fazendo sobre a confecção de fanzines na França, Portugal e Brasil. Depois voltarei a editar o meu "Nhô-Quim".
   BF - Aliás, a paragem na edição desse fanzine foi uma pena muito grande (...) já para não falar no projecto anterior, o "Marca de Fantasia". Irás regressar com novas ideias, explorando outras fórmulas?
   HM - No caso do "Nhô-Quim, como estava muito voltado para divulgar o que ia acontecendo no Brasil, e como eu estaria fora na França (...) preferir parar.
   BF - Mas na França não estiveste parado, lançando primeiro o "Echo des Zines" e depois o "Saravá". Como surgiram e o que há a dizer sobre ambos?
   HM - O primeiro foi uma inquietação minha, depois de parar com o "Nhô-Quim", achei que não podia ficar inactivo. (...) Aí pensei, se não tinha hipótese de continuar a trabalhar só com quadrinhos, resolvi trabalhar num universo mais amplo, que poderia incluir as HQ, mas também outras preocupações artísticas, como música ou literatura. Assim surgiu "Saravá" como reflexo de toda   
   BF - E que tal a receptividade? Foi melhor?
   HM - O "Saravá" é destinado a poucos contactos no Brasil, devido aos custos e, tendo isso em conta, creio que a receptividade foi excelente.
   BF - Como te surgiu o interesse por te envolveres com os fanzines?
   HM - Antes de fanzine, eu fazia revistas alternativas como a "Maria", a minha personagem feminista. Cheguei a colocá-la em distribuidoras na Paraíba, o meu estado nordestino (...) O resultado acabava sendo muito mau, esperávamos sempre mais receptividade do que aquela que acontecia (...) Só nos inícios dos anos 80 comecei a tomar conhecimento que existiam fanzines, como eu os reconheço. Aí, achei-os uma produção mais consequente do que a revista de autor, onde de certa forma me desgastei, cansei de me estar auto-produzindo, e resolvi estudar e investigar os quadrinhos de uma forma mais genérica, no caso através de fanzines. Foi quando fui a São Paulo fazer mestrado e estabeleci contactos com muitos autores, muitos fanzineiros, e resolvi criar o "Marca de Fantasia", que durou 6 anos. De 85 a 89 mais ou menos. Depois veio o "Nhô-Quim". (...)
   BF - Quem faz uma consulta à colecção do "Nhô-Quim" depreende facilmente que caiu no goto. Houve boa aceitação ao projecto, que está parado. À espera de melhor oportunidade?
   HM - Exacto. Agora não tenho muita certeza se a coisa continua. (...) Penso continuar com "Saravá", que é mais abrangente, essa linha como o "Panacea" me interessa, porque aborda vários géneros de arte. Um problema que se coloca, no entanto, a este tipo de fanzines é que fica meio difuso saber quem é o público, enquanto nos quadrinhos já não há que enganar.
Quando a gente faz um fanzine de HQ podemos aprofundar certos temas e até desgastá-los, como, como no caso do "Nhô-Quim" em que pegava em certas polémicas e ia-as passando de número a número, desenvolvendo-as. Inclusive. Isso era muito interessante porque todo o mundo participava.
   BF - Será essa uma das essências do fanzine, ou seja,o leitor folheia-o a ver que há ali vida (...)
(...)
Entrevista conduzida por 
Fernando Vieira

..............................................

A banda desenhada "O Príncipe, o Livro e o Anel", de Luís Filipe Peres aparece reproduzida a partir da prancha 11, e teve direito à publicação de dez pranchas (de que mostro apenas três) e também a capa em quadricromia. Aliás, esta novela gráfica foi mais tarde publicada em livro.
..............................................................


"Esta Palavra Fanzine" constitui uma tema especialmente apreciado por este blogger. O artigo (ilustrado por João Fazenda) é constituído por uma introdução não assinada, seguida por vários depoimentos em que são analisadas características e finalidades dos zines. 
Reproduzo em seguida parcialmente o artigo, começando pela síntese da introdução:

"FANZINE - palavra de sonoridade exótica que quer significar, grosso modo, qualquer coisa como "publicação modesta e simples (*) onde alguém dá a conhecer a outrém as suas ideias, os seus gostos ou o seu valor". Um exemplo é exactamente este vosso BEDELHO Fanzine, que visa divulgar os jovens valores que despontam para as Histórias aos Quadradinhos. Concretamente, no campo da chamada 9ªArte, os fanzines desde finais da década de 60, princípios da de 70, têm mantido um papel fulcral, não apenas na descoberta de talentos em potência (alguns, presentemente nomes consagrados (...) 
(...) Por isso achamos interessante revelar o que algumas figuras gradas do meio pensam acerca do fanzine e de tudo quanto  directamente lhe diga respeito.

   "Na área editorial da banda desenhada, eis a componente mais aguerrida, saudável e descomprometida. Aliás, sou de opinião que tais revistas constituirão, num futuro próximo, o último reduto para as exigências banda-desenhísticas dos jovens com talento para o desenho. E poderão vir a ser, igualmente, o único e providencial "viveiro" onde as grandes editoras, sem quaisquer encargos, poderão abastecer-se de novos valores".
   Geraldes Lino, crítico, in "Selecções BD"     
  
   "O surto de pequenas publicações especializadas falando sobre banda desenhada foi, certamente, um dos catalizadores da popularidade que hoje em dia a BD felizmente encontra em França, Bélgica, Espanha... e Portugal, claro está! Mas se o surgimento deste tipo de publicações foi/é pródigo, em contrapartida a sua continuidade - salvo raras excepções - é efémera. (...)
   Jorge Linhares, livreiro, in suplemento "Insecticida" da 5ª edição da revista "O Mosquito".

   "A origem e relativo sucesso dos fanzines está directamente relacionado com a necessidade de soluções para os jovens desenhadores portugueses. Constituem um panorama positivo na BD nacional, como actividade paralela às grandes editoras, e importante no despertar e afirmar de novos valores e novos entusiastas. Muita força de vontade e amor à BD sustentam alguns fanzines, mais do que o aspecto comercial da sua distribuição. O fanzine, como verdadeiro veículo de difusão e sensibilização, deve partir de projectos coerentes, virado para a intervenção no meio, para a descentralização da BD, para a oferta de oportunidades, e não como afirmação pessoal ou de um grupo de amigos no meio bedéfilo. Vivam os fanzines!"
in conclusões do 1º Encontro de Bedéfilos em Viseu
..............................................................................................

 Apenas três pranchas (de um total de sete) da bd "Fogo Greguês", de um autor, para mim desconhecido (brasileiro?), Sérgio Soldá
...................................................


Merece leitura atenta um conjunto de críticas da autoria de José Carlos Fernandes, na rubrica "Opinião", de que se reproduzem excertos. Afirma então o JCF:

"Quando se fala de BD europeia, dificilmente nos lembramos da Grã-Bretanha. Nas últimas décadas, a França, a Bélgica, a Espanha e a Itália têm, sem sombra de dúvida, gerado os autores mais influentes e dominado o panorama editorial. 
É verdade que boa parte da renovação que os comics americanos têm sofrido recentemente se deve a autores britânicos. Mas como esta inovação se tem processado no interior de uma matriz já existente, a originalidade e criatividade dos britânicos poderá ter passado um pouco despercebida.
   Já a série de "graphic novels" que a editora VG Graphics (uma subsidiária da Victor Golancz) tem vindo a publicar desde 1991 não deixa lugar para equívocos: os 5 títulos editados são de uma originalidade e criatividade surpreendentes, podendo causar algum choque aos leitores mais familiarizados com a BD "mainstream" franco-belga, que é a que ocupa o centro das atenções dos editores e divulgadores portugueses.
   As obras em questão são "A small killing", com argumento de Alan Moore, ilustrada por Oscar Zarate, "The Luck in the Head", com argumento de M. John Harrison, ilustrada por Ian Miller (ambas de 1991), "The Minotaur's Tale", de AlDavison , "Kling Klang Klatch", com argumento de Ian McDonald, ilustrada por David Lytlleton, e "Signal to Noise", com argumento de Neil Gaiman, ilustrada por Dave McKean (todas de 1992).(...)
(Classificação: ***)
(...)
Cidades Obscuras
   Não. Uroconium, a cidade onde decorre a acção de "The Luck in the Head", não faz parte da série de Schuiten e Peeters. É mais obscura. Muito mais obscura. Um dédalo de torres arruinadas e ruas tortuosas, em que a noite alterna com crepúsculos sangrentos e onde vagueia o poeta Ardwick Crome, mergulhado nas suas recordações e nos seus sonhos.
   Mas se os sonhos de Crome são estranhos e perturbadores, a vida em Uroconium não o é menos. "Os seus habitantes adoram a arena. Todas as noites alguém é queimado, ou esquartejado por crimes políticos ou religiosos. Onde quer que se viva na cidade, podem ver-se os fogos na escuridão e ouvir-se os gritos no vento".
   O mundo sombrio e delirante criado por M. John Harrison dificilmente poderia encontrar melhor ilustrador que Ian Miller, um grafismo violento e ousado, que tem menos a ver com os referenciais usuais da banda desenhada do que com os universos de Hieronymus Bosch, Peter Bruegel, Max Ernst e Francis Bacon. Por outras palavras: "The Luck in the Head" é um pesadelo transmutado em imagens e palavras impressas.
(Classificação ****)
(....)
.............................................................


"Noite", de Bruno Escoval, um autor de boa sensibilidade tendencialmente underground. que andou pela BD discretamente, mas que merecia ter tido maior divulgação.
----------------------------------------------------- 

          
Para terminar o zine, a contracapa está ilustrada por um bem imaginado cartune, criado por Maria Amélia Correia, ilustre desconhecida na altura e que assim se manteve.

Sem comentários: